DIREITO À SEGURANÇA E DIREITO À CIDADE
Lúcia Siqueira·
Direito assegurado pela Constituição de
1988[1], celebridade nos meios de
comunicação, nos trabalhos acadêmicos, projetos institucionais e plataformas
eleitorais, a segurança, ou melhor, a falta dela, é uma das principais
preocupações da mulher e do homem urbanos que condiciona a forma de viver e
conviver na cidade.
Mudança de trajetos, horários, uso dos
espaços públicos e forma de lazer são exemplos das alterações de comportamento
mais frequentes. Em paralelo e/ou em conjunto com isso, as cidades vêm
concretizando esse novo fenômeno, gerando novos modelos de relações pessoais e
espaciais que têm como expoentes máximos a segregação social e espacial. Este
texto tem como principal intenção refletir sobre a busca individual de
segurança e o direito à segurança coletiva no espaço urbano.
Baseados em...
Antes de iniciarmos nosso propósito, faz-se necessário deixar
claras as bases do nosso raciocínio. Primeiro, adotamos que a segurança deve ser considerada um direito de cidadania, pois significa
liberdade (respeito ao indivíduo) e ordem (respeito às leis e ao patrimônio),
que são fundamentais para o desenvolvimento econômico e social.
Segundo, por violência
entendemos que “é todo ou qualquer ato ou omissão praticado individual ou
institucionalmente contra o ser humano, que viole sua inteireza e
individualidade física, moral, psicológica, emocional, sexual, étnica, cultural
e social”[2].
E terceiro, “classificamos” a violência em dois tipos: a violência vermelha e a branca[3]. A violência vermelha é
caracterizada por atos como assassinato, roubo, estupro, ou seja, qualquer ação
que viole a integridade física de uma pessoa. Já a violência branca é aquela
sofrida por pessoas que não têm acesso a direitos como moradia, trabalho,
educação e saúde. Nesse processo, muitas vezes a violência vermelha torna-se a
forma imediata de resposta à violência branca sofrida, uma passa a ser causa
e/ou consequência da outra.
Segurança, um produto lucrativo.
Os custos com a segurança para o Poder Público acarretam gastos
monetários e sociais significativos[4]. A aplicação dos recursos
na construção e manutenção da estrutura penitenciária, núcleos de segurança,
compra de tecnologia de ponta de serviços de informações (muitas vezes pouco
trabalhados pelos policiais) não trazem, na maioria das vezes, respostas
concretas ao cotidiano da maioria da população. Consequentemente, isso leva a
um desgaste da credibilidade das instituições públicas.
Para o setor privado, a busca por segurança e o medo da violência
vem a cada ano abrindo portas para um mercado bem lucrativo. Como as respostas
à coletividade, de responsabilidade do Estado muitas vezes são frustrantes e
pouco ágeis, a resposta individual parece ser a forma mais rápida e eficaz de
se ter segurança.
Para isso, vende-se circuito de TV, vende-se alarme
antifurto, vende-se sensor de movimento, vende-se carro blindado,
vende-se cerca elétrica, vendem-se detectores de metais, vende-se
a “ideia de segurança!”.
Para se ter uma ideia, nos últimos dez anos ocorreu um aumento
alarmante de consumo de dispositivos de segurança que vão desde guarda-costas
até prédios dotados de diversos esquemas de proteção. Em 1995, as classes média
e alta do Rio de Janeiro e São Paulo despenderam cerca de 15% do seu orçamento
familiar anual com segurança[5].
Estudos realizados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) afirmam que
o número de seguranças particulares hoje é três vezes e meia maior que todo o
contingente das forças armadas nacionais e que os custos com a violência
atingem 10% do PIB, algo em torno de R$130 bilhões.
O mercado imobiliário também soube tirar proveito desse novo filé
do mercado. Área do apartamento e quantidade de vagas não dão mais aquele status
de antigamente, o mais vendável hoje é o apartamento com guarita e circuito
interno de tv. Mas, qual a consequência disso na cidade?
E a cidade, como é que fica?
“Presídio Professor Aníbal Bruno, Curado. Doze câmaras de
vigilância eletrônica, muro de seis metros de altura, cerca elétrica, nenhum sistema
detector de violação. Função: retirar do convívio social pessoas que,
teoricamente, representam ameaça à coletividade.
Edifício Hockenheim, Jaqueira. Dezesseis câmaras de
vigilância eletrônica, muro de oito metros de altura, sistema infravermelho com
sete pontos de detecção, acionamento remoto de patrulha de segurança. Função:
proteger seus moradores de pessoas como as que se encontram no Aníbal Bruno.”[6]
O texto acima exemplifica bem o que vem acontecendo com as nossas
cidades. Atualmente elas estão passando por um processo de mudança de
organização social, gerando novas formas de relacionamento e novos desenhos no
espaço urbano, enfim, o que muitos autores denominam de segregação espacial.
Na busca por proteção e segurança, os
moradores das grandes cidades passaram a adotar soluções privadas de proteção e
passam a se “aprisionar” em suas casas e, progressivamente, (diante do
sentimento de insegurança da cidade) abandonam o espaço público. No entanto,
esse tipo de reação imediatista, individualista e antissocial só alimenta mais
a violência e, consequentemente, a insegurança.
Um
bom exemplo disso são os "condomínios exclusivos”, com maior difusão no
Rio de Janeiro e São Paulo. Esses oferecem dentro de seus muros, além de
comércio, serviços e lazer, o fator segurança. Porém, não só “encarceram”
seus moradores como acentuam a desconfiança de quem está do lado de fora.
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Em Recife, esses condomínios começam a ganhar espaço no mercado
imobiliário não só para as classes mais abastadas como também para as classes
médias, como no caso dos modelos Morada Recife Antigo e os condomínios de
Aldeia. Além disso, os espaços dito públicos começam a sofrer transformações
desastrosas.
Muitas ruas estão se tornando conjuntos de fortalezas. Um
caso bastante interessante encontramos no bairro da Jaqueira, onde um
conjunto de ruas que cercam a Praça Fleming é uma verdadeira “vitrine” do
modelo de arquitetura do medo.Existe um conjunto de prédios para a classe
média alta onde os muros altos, grades e as câmaras de segurança já não são
mais eficientes. Pelo menos um deles é provido de detectores que, ao sinal de
pessoas próximas a portaria do prédio, acedem luzes de alerta.
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O reflexo do medo na arquitetura não se apresenta apenas nas
fachadas, ele também está presente nas plantas dos edifícios. Nos pavimentos
térreos dos prédios, novos elementos vão sendo incorporados, as guaritas já não
suficientes, o visitante tem que ultrapassar vários "obstáculos" até
chegar ao hall social.
Um exemplo disso é um edifício residencial localizado no bairro
Ilha do Retiro. Até chegar ao hall social do prédio, o visitante tem que passar
por três portões e uma porta. Entre o segundo e o terceiro portão, o visitante
tem que ficar em uma "gaiola", sempre sendo filmado por câmaras de
TV.
Quem está dentro e quem está fora?
Depois de toda essa demonstração de
“segurança”, vem a pergunta: essa segurança está a favor de quem e contra quem?
Quem está dentro e quem está fora do processo?
O “novo modelo” de
arquitetura e, consequentemente, de cidade produz edificações que trazem
consigo o fenômeno e a forma do "aprisionamento" e da
"murificação". Os cidadãos tornam-se prisioneiros em suas próprias
casas e as ruas se transformam em extensos corredores murados. A sociedade
passa a ser dividida em dois mundos: os de dentro e os de fora, os
"protegidos" e os desprotegidos, os seguros e os possíveis suspeitos.
Simbólica e fisicamente, essas “táticas
de segurança” atuam da mesma forma: estabelecem diferenças, divisões e
distâncias, estabelecem regras de evitação
e exclusão.
Tudo isso gera um processo da não identificação com o lugar. Os
excluídos veem através dos muros a concretização do símbolo da exclusão. “Ele vê os símbolos da exclusão na sua frente
e não tem acesso a nada... A violência é a forma que ele encontra de combater
uma violência ainda maior: a invisibilidade social” (Gilberto Dimenstein,
1999).
Por outro lado, “quem está dentro” também sofre uma agressão.
Existe violência maior, socialmente, do que construir um muro para viver
melhor?
Então...
Quando
a cidade passa a ter seus espaços públicos marcados pela exclusão, ela nunca
poderá ser uma cidade segura. Quando existirem pessoas com mais direitos à
cidade do que outras, ela nunca será segura.
Então, a luta pelo direito à cidade, por
uma cidade igualitária social e espacialmente, onde todos tenham acesso à
moradia, ao solo, ao transporte, à educação, à saúde, ao lazer, enfim, acesso à cidade, também é a luta por direito
à segurança e à cidade segura.
· Arquiteta e
urbanista
[1] "Art. 6o São direitos sociais a
educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição”.
[2]
Concepção do Comitê de Promoção de Direitos Humanos e Prevenção da Violência,
da Prefeitura do Recife.
[3] GERRA,
Alba, Raízes Afetivas da Violência, 1988.
[4] Só em
Pernambuco, nos últimos cinco anos foram gastos R$ 110 milhões. Fonte: Jornal
do Commercio (23/05/04)
[5]
Brigagão, Clovis.
[6] Diário
de Pernambuco, outubro de 2001.
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