segunda-feira, 19 de maio de 2014



Machado de Assis

Um Apólogo
Machado de Assis


Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora?  A senhora não é alfinete, é agulha.  Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa!  Porque coso.  Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você?  Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em que de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.  Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?  Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da  bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?  Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: 
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. 
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.

Conheça o autor e sua obra visitando "Biografias".

http://www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp


Responda de acordo com o texto


1) Pode-se constatar, no diálogo entre a agulha e a linha, uma relação de


a) opressão do mais forte sobre o mais fraco. 
b) amor e ódio entre os elementos do processo de comunicação. 
c) desigualdade na obtenção de recompensas. 
d) êxito e fracasso marcados pelo egoísmo desenfreado. 

2) É possível inferir que, no texto, o autor 

a) evidencia traços de analogia entre a agulha e o professor de melancolia. 
b) vale-se do uso da agulha e da linha apenas em sentido literal. 
c) assume uma postura paternalista ao referir-se ao alfinete. 
d) repudia a impassibilidade da agulha diante da arrogância da linha. 

3) Assinale o fragmento que, se contextualizado, sugere a personificação da agulha e/ou da linha. 

a) “... eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...” 
b) “Você fura o pano, nada mais...” 
c) “Por que está você com esse ar, toda cheia de si...” 
d) Chegou a costureira... pegou da agulha, pegou da linha, enfiou alinha na agulha, e entrou a coser.” 


4) Uma postura crítica e até mesmo moralizadora foi exemplificada, no texto, pela fala 

a) da costureira. 
b) da linha. 
c) da agulha. 
d) do alfinete. 

 5) A leitura do texto permite identificar equidade entre a postura de 

a) linha/alfinete. 
b) agulha/professor de melancolia. 
c) costureira/professor de melancolia. 
d) alfinete/costureira. 

6) No fragmento “... a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:...”, o vocábulo grifado, sem perda de sentido, pode ser substituído por 

a) vingar. 
b) criticar. 
c) menosprezar. 
d) escarnecer. 

7) Leia o fragmento abaixo e assinale a opção que identifique o recurso estilístico nele utilizado: 

“E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano.” 

a) onomatopéia. 
b) metonímia. 
c) catacrese. 
d) pleonasmo. 


8-O que gerou o conflito entre a agulha e o novelo de linha?


9- A linha demonstra-se tão arrogante, sabendo da importância da agulha apresente pontos em que ambas são importantes nas suas funções e responda? Uma poderia fazer o seu trabalho se a ajuda da outra, por quê? 

10-  O uso de palavras como cousa e mofar é comum em textos da atualidade? A que período de tempo nos remete esta linguagem?
 

3 comentários:

  1. Pessoal do 8º A responder somente nesta aula. Por favor façam na folha.
    Bom término de trabalho.

    ResponderExcluir
  2. Ex do exercício 12: costureira (st) é encontro consonantal

    ResponderExcluir